terça-feira, 1 de outubro de 2013

Ferros do Santo Ofício


Uma leitura na diagonal de um ou dois textos de Gonçalo Cadilhe no Expresso não me tinha deixado grande impressão, e uma tirada assassina de Rogério Casanova não sei onde - "como diria Gonçalo Cadilhe é muito bonito" - tinha reforçado essa ideia.

Mas resolvi agora atacar um seu livro que me ofereceram em tempos, e melhorei a impressão inicial. É verdade que cai mais vezes do que devia em lugares comuns, quer nas suas observações quer no estilo, por assim dizer, mas de um modo geral tem uma escrita competente e dá claramente a ideia de ser um gajo porreiro (confesso que sou sensível a isso).

No entanto se calha uma pessoa ler a seguir um livro como 'Vagabundo ao serviço de Espanha', como foi o meu caso, em que Camilo José Cela narra algumas das suas viagens a pé pela Espanha profunda, percebe-se claramente a diferença entre um viajante sortudo que consegue ganhar a vida a  escrever sobre as suas viagens, e um grande escritor que se resolve pôr a caminho e escrever sobre isso.

Cadilhe nas suas viagens à volta do mundo encontra muita gente, mas ninguém como Dom Fabián Remondo y Larangas, natural de Valdepinillos, que se propõe arrancar um dorido dente do siso ao vagabundo (como Cela se auto-intitula, sempre na terceira pessoa) e o tranquiliza dizendo:

"- E além disso, meu amigo, esta ferramenta é do melhor, é a ferramenta que utilizo para os pacientes de primeira, para os senhores e para todos aqueles que, sem o serem, me pagam duas pesetas por extracção, como eles me pagam. Esta ferramenta foi feita com ferros do Santo Ofício, e estes ferros já viram tanto sangue que agora espantam o sangue e cortam as hemorragias. Pode dar-me duas pesetas?
- Sim, senhor. Tome lá."

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