Então é assim:
1.
Money, Martin Amis (5)
Muito haveria a dizer sobre a ascensão e queda de John Self, genuíno produto da classe baixa inglesa que ganha fama e proveito na publicidade (touché!) e chega a Hollywood. Mas fiquemo-nos por um lugar comum: este livro é um soco no estomago. Mas não se assuste o amável leitor: é também muito divertido. Uma obra-prima.
e Uma história de amor e trevas, Amos Oz (5)
O título não promete lá muito, a capa da edição portuguesa, a fazer lembrar um livro de auto-ajuda, é de bradar aos céus, mas esta autobiografia de Amo Oz (uma 'autobiografia nacional', diz a contracapa citando o Ha'Aretz) é maravilhosa (estamos em noite de lugares comuns).
Um trecho, logo da segunda das seiscentas e tal páginas, para percebermos o mundo em que o judeu Oz, nascido em Jerusalém em 1939, foi criado:
"Os dois quartos, o buraco da cozinha, a casa de banho e, em particular o corredor, eram escuros. Os livros enchiam a casa toda: o meu pai lia em dezasseis ou dezassete línguas e falava onze (todas com pronuncia russa). A minha mãe falava quatro ou cinco línguas e lia umas sete ou oito. Falavam entre eles em russo ou polaco, quando não queriam que eu os compreendesse (que era a maioria das vezes). [...] Por razões culturais liam sobretudo em alemão ou inglês, mas de noite sonhavam naturalmente em iídiche. Mas a mim ensinaram-me apenas hebraico: deviam recear que o conhecimento das línguas me fizesse sucumbir ao encanto da bela e fatal Europa."
O livro está cheio de personagens inesquecíveis, maioritariamente os antepassados de Oz fugidos da Europa de leste (e cujas vidas e origem Oz descreve fascinantemente) para Israel, onde a maioria deles nunca se adaptou:
O tio Yosef [Klausner] que o pequeno Amos visitava com os pais, e "que não tinha filhos, mas cuja celebridade se espalhara mundialmente e cujas obras eram traduzidas mesmo nos países mais longínquos".[...] "Dedicou vários anos da vida à escrita da sua obra magna, o livro sobre Jesus de Nazaré, no qual defendia - para espanto de cristãos e judeus - que Jesus nasceu e morreu judeu e não tinha a menor intenção de fundar uma nova religião. Para além disso, considerava Jesus o 'Moralista judeu por excelência'.";
O senhor Agnon, "que vivia mesmo em frente do tio Yosef", "mas que não se pode dizer que tivessem grande amizade um pelo outro". "Uma solenidade glaciar caía sobre a rua quando calhava os dois encontrarem-se, o professor Klausner e o senhor Agnon". "O senhor Agon viveu longos anos e ganhou o Prémio Nobel da Literatura, mas em troca deve ter rangido os dentes de raiva quando deram à à pequena rua, aquela travessa do bairro de Talpiot onde ambos moravam, o nome de Klausner. Desde então até ao dia que morreu foi condenado a ser o escritor S.Y.Agnon da rua Klausner".
("Durante anos procurei libertar-me da sombra de Agnon. Lutei para distanciar a minha escrita da sua linguagem", diz-nos Oz algumas páginas à frente).
A avó Schlomit, que "chegada a Jerusalém directamente de Vilna num dia quente do Verão de 1933, deitou um olhar apavorado aos mercados húmidos [...] e decretou: 'o Levante está cheio de micróbios'. [...] "Acabou de morrer de ataque de coração: o facto é esse. Embora não tenha sido o ataque mas o excesso de limpeza que deu cabo dela'".
O avô Alexander, "que teve uma longa vida e sobreviveu vinte anos à avó morta no banho". "Alguns meses após a morte da avó, a vida amorosa do avô começou a desabrochar, tumultuosa e maravilhosa como nunca. Segundo me pareceu, foi nessa altura que o meu avô de 77 anos descobriu os prazeres do sexo".
E claro, os pais de Amos, talvez as personagens principais do livro, de que o escritor nos dá um complexo retrato. O pai:
"O tio Yosef acompanhava de perto o pai, que era um dos seus melhores alunos, mas no devido momento não o escolheu para seu assistente para não dar ensejo às más línguas. O Professor Klausner tinha uma tal preocupação em preservar o seu nome e a sua integridade que provavelmente prejudicou o seu sobrinho, carne da sua carne". "O pai disse um dia com um sorriso amargo: 'se eu não fosse seu parente, e se ele me tivesse amado menos, talvez eu hoje também fosse professor no Departamento de Literatura da universidade e não um simples bibliotecário'.[...] O meu pai era um poço de sabedoria, um génio dotado de uma memória fenomenal, especialista em literaturas estrangeiras e hebraica, que dominava imensas línguas, tão à vontade na Mishna, no midrash e na poesia hebraica medieval, como em Homero, Ovídio, as Upanishadas, Shakespeare, Goethe e Mickiewicz, tão diligente e aplicado como uma abelha na sua colmeia, recto e preciso como uma régua, um professor de craveira superior que sabia explicar com simplicidade e rigor as migrações dos povos, o Crime e Castigo, os submarinos ou as leis do sistema solar. E nunca chegou a estar diante de uma classe de alunos".[...] "Naquela época Jerusalém estava cheia de refugiados polacos, russos e de foragidos de Hitler, entre os quais grandes nomes de universidades célebres, muito mais professores do que alunos, muito mais investigadores e sábios do que estudantes".
E acima de todos a sua mãe, cuja figura fantasmagórica paira sobre todo o livro:
"Ambos tinham desembarcado em Jerusalém directamente do século XIX: o pai crescera alimentado do romantismo nacional, teatral, sanguinário e aguerrido (a primavera das nações, o Sturm und Drang") sobre cujos cumes de massapão jorrava como um caudal de champanhe, algo do frenesim viril de Nietszche. Quanto à minha mãe, vivera segundo um cânone romântico diferente, uma mistura de introspecção, melancolia, de solidão em modo menor, impregnadas do sofrimento pungente e sensível dos solitários, e dos eflúvios outonais saturados da decadência 'fim de século'".
"Mas quais eram as esperanças? Que espécie de vida pura e livre esperavam os meus pais encontrar aqui?
Talvez tivessem a vaga esperança de encontrar na terra de Israel renovada algo menos judeu-pequeno-burguês e mais moderno e europeu; menos grosseiro e material e mais espiritual; menos febril e falador e mais reflectido, calmo e contido".
E:
"Filho único, era sobre os meus pequenos ombros que repousava todo o peso da sua desilusão".
E chega. Para não ser desmancha-prazeres, abstenho-me de mais citações, nomeadamente das longas e comoventes páginas que Oz dedica à progressiva depressão da sua mãe, que culminaria no seu suicídio tinha Amos 12 anos e que o marcaria profundamente, levando-o a cortar os laços com o pai, indo viver para um kibutz e mudando de apelido.
Mas há mais, claro: desde um muito divertido encontro do jovem Amos Oz, então a viver no kibutz, com Ben Gurion himself (que se considerava um especialista em Espinoza e garantiu a um indignado e atónito Amos Oz que a sua (de Espinosa) teoria se resumia a: 'temos de manter o sangue frio'!), até à confissão de que foi um livro de Sherwood Anderson que libertou as suas capacidades de escrita e lhe indicou o seu caminho. Ou como 'Miguel Strogoff' de Julio Verne o marcou até hoje (especialmente uma cena, que Eduardo Prado Coelho também refere numa passagem dos seus diários que li no mesmo dia, por incrível que pareça).
Mas mais do que uma autobiografia, este é o retrato de todo um mundo desaparecido.
Amos Oz com os pais, Fania e Yehuda Arye Klausner
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