quinta-feira, 21 de maio de 2009

Eu era feliz e ninguém estava morto

No tempo em que O Independente era o «meu» jornal – quando eu tinha 15, 16, 17 anos – havia três cronistas que eu lia sempre e à frente do resto: o Miguel Esteves Cardoso, o Vasco Pulido Valente e o Bénard da Costa. (Pela minha saúde, naquele tempo eu nem sabia quem era o Paulo Portas.) E nunca depois «tive» um jornal como naquele tempo «tinha» O Independente. O MEC já vinha de trás, da «Causa das Coisas» no Expresso, e a importância que teve para as pessoas da minha geração que gostavam de jornais é impossível de quantificar. O Vasco Pulido Valente foi marcante; talvez nessa idade, eu (como muitos?) tivesse começado a escrever sobre política tendo-o a ele como modelo (depois, a devoção tornou-se mais esbatida). Mas a educação mais séria, mais profunda, culturalmente mais ampla, recebi-a do Bénard da Costa, com as crónicas de jornal (relidas em livro muitos anos mais tarde), a Cinemateca (que nessa altura comecei a frequentar) e as famosas «folhas» que na Cinemateca sempre acompanham os filmes.Nesse sentido, é muito pouco provável que exista alguma personalidade pública em Portugal a quem eu deva tanto como ao Bénard da Costa. Sem gostar de vídeo nem de DVD, praticamente todos os filmes que vi fora do circuito comercial passaram na Cinemateca; os meus conhecimentos e as minhas lacunas refletem em parte (refletem modestamente) os gostos, as escolhas, as idiossincrasias do diretor da Cinemateca Portuguesa; o cânone a que me habituei é o dele. O olhar do Bénard estimulou o meu interesse propriamente estético, propriamente visual, sobre os filmes (o deslumbramento perante a imagem na sala escura – desculpem o cliché). Acima de tudo, os textos do Bénard abriam caminhos à interpretação dos filmes, que estavam muito além de «gostar ou não gostar», e ainda muito além dos factos e dos nomes relativos à história do cinema.A partir da história na tela, o Bénard criava uma outra história, que eram os seus textos. Não foram poucas as vezes que as folhas do Bénard me pareceram tão notáveis enquanto textos como os filmes a que se referiam me pareciam geniais enquanto filmes. Outras vezes, mesmo recentemente, os textos do Bénard foram para mim o highlight, depois de uma sessão que me entusiasmasse pouco. E houve pelo menos um filme (Fortune Cookie, de Billy Wilder, com Jack Lemmon e Walter Matthau) em que ainda estou convencido de que a interpretação do Bénard na folha estava errada, assente num equívoco de tradução de uma palavra. Mas não importa, ou melhor: é isso mesmo que importa: não era menos estimulante e extraordinária por isso.No melhor livro que li no ano passado (Comment parler des livres que l’on n’a pas lus?), Pierre Bayard defende provocatória e insistentemente que o que interessa não é o livro que está escrito, mas o que fazemos a partir do que está escrito. (Nunca se deve ler durante mais do que seis minutos seguidos: estiola a imaginação). O Bénard era a demonstração desta regra. Ele não se limitou a ver filmes, ele viu os filmes, como um trabalho ativo, criativo, construiu as histórias, as interpretações, as leituras – e meteu-se todo lá dentro daquilo. Deu-nos a ver: os filmes e os textos, as duas coisas ligadas, duas coisas autónomas, as duas coisas funcionando na cabeça dele. Não é talvez de espantar que, para ele como para mim e para muitas pessoas, a Cinemateca e a pessoa do Bénard se tenham nalguma medida confundido.Além disto tudo, era ainda um intelectual de dimensão ampla, que cruzou grande parte dos acontecimentos culturais e até políticos que marcaram a segunda metade do século XX português.
A dívida que muitos temos com o Bénard da Costa é enorme. Mas a herança que ele deixa, o seu impacto, as suas repercussões, estou convencido de que é profunda. Obrigado.
Ivan Nunes


ps.: Hoje, às 23h38, documentario de José Carlos Santos sobre a vida de João Bénard da Costa. Na 2.

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